sábado, 31 de agosto de 2013

nerú

Tu sabes como é:
se olho a lua de cristal, os galhos vermelhos do outono em minha janela,
se toco junto ao fogo as impalpáveis cinzas
no corpo retorcido da lenha,
tudo me leva a ti,
como se tudo o que existe:
aromas, luz, metais,
fossem pequenos barcos que navegam em direção às ilhas tuas que esperam por mim.

Agora, bem,
se pouco a pouco tu deixares de me querer
pararei de te querer
pouco a pouco.

Se de repente me esqueceres
não me procure,
pois já terei te esquecido.

Se consideras violento e louco o vento das bandeiras que passa por minha vida
e decidires me deixar às margens do coração no qual tenho raízes,
lembra-te
que nesta dia,
a esta hora
levantarei os braços e minhas raízes partirão em busca de outra terra.

Mas
se em cada dia,
cada hora,
sentires que a mim estás destinado com implacável doçura,
se em cada dia levantares uma flor em teus lábios para me buscares,
oh meu amor, oh minha vida,
em mim todo esse fogo se reacenderá,
em mim nada se apaga ou se esquece,
meu amor se nutre do seu, amado,
e enquanto viveres
estará em teus braços
sem deixar os meus.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

..

Acordamos e não nos levantamos.
Desde que nos apaixonamos, a cama é o nosso acampamento.
Despertamos cedo e ficamos conversando, recapitulando a rotina, rindo à toa.
É um domingo inteiro assim, entre travesseiros, almofadas e edredom.
O quarto permanece trancado, as cortinas fechadas, o jornal empilhado na porta.
De vez em quando, um dos dois é sorteado como emissário da geladeira, para buscar frutas ou água. É uma visita rápida pelos demais aposentos, na ponta dos pés para não assustar as pálpebras.
Não é aconselhável demorar pela sala, para a claridade não quebrar o encanto e nos obrigar a sair à rua.
Somos sonâmbulos um do outro. Viciados um no outro. Intoxicados um do outro.
Passamos os dias no colchão travando histórias e revelando segredos.
A cama é o nosso hotel, nossa casa na serra, nossa residência de praia, nosso bunker, nosso pub, nossa água-furtada.
A cama é o que precisamos do mundo, o resto pode levar.
Reduzimos o universo àquele estrado de madeira, e nos divertimos com os problemas antigos, com as dores antigas, com aquilo que nos antecedeu e ainda não era a gente.
Na verdade, sinto que estudo para o vestibular de sua memória. Olho o teto coberto de fórmulas, fotos, cenas, equações e cálculos de sua vida.
Decoro suas sobrancelhas, seus suspiros, sou um mímico atento de seu rosto.
Faço perguntas despropositadas - nunca prevejo o que vai cair na prova do amor.
Interesso-me por qual lugar que sentava no colégio Champagnat. Me diz que era no fundo, com as costas coladas na janela.
E você me interroga a cor da minha térmica no jardim de infância do Santa Inês. Falo rápido que era azul.
Quem teria coragem de fazer essas questões senão quem ama? Mais: quem responderia com naturalidade essas questões senão quem ama?
Não nos assustamos com nenhuma gratuidade. Não estranhamos a curiosidade ou nos envergonhamos da loucura.
Intimidade é não temer o que será feito com nossas palavras.
Deitamos de lado, atravessados, você em meu peito, eu encaixado na moldura de seu pescoço. Giramos para esquerda, tonteamos para direita, argumentamos, confortamos, descrevemos nossos amigos, confessamos nossos pecados, sussurramos bobagens.
Os ouvidos se tornam rápidos como a boca. Falo e ouço na mesma hora.
Nossas mãos se beijam, nossos pés se beijam.
Tudo é intenso entre nós a ponto da lembrança criar a experiência. É como se nossos olhos fossem aquela máquina polaroid cuspindo fotos.
Os vizinhos devem suspeitar que já morremos, mas nunca estivemos tão vivos.


- Não abandonamos o quarto no domingo, -

1968*


“Quem já conheceu o estado de graça reconhecerá o que vou dizer. Não me refiro à inspiração, que é uma graça especial que tantas vezes acontece aos que lidam com arte.
O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe. Neste estado, além da tranqüila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve, porque na graça tudo é tão, tão leve. É uma lucidez de quem não advinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Não perguntem o quê, porque só posso responder do mesmo modo infantil: sem esforço, sabe-se.
E há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma num dom. E se sente que é um dom, porque se está experimentando, numa fonte direta, a dádiva indubitável de existir materialmente.
No estado de graça, vê-se às vezes a profunda beleza, antes inatingível, de outra pessoa. Tudo, aliás, ganha uma espécie de nimbo que não é imaginário: vem do esplendor da irradiação quase matemática das coisas e das pessoas. Passa-se a sentir que tudo o que existe – pessoa ou coisa – respira e exala uma espécie de finíssimo resplendor de energia. Na verdade, o mundo é impalpável.
Não é nem de longe o que mal imagino deva ser o estado de graça dos santos. Esse estado jamais conheci e nem sequer consigo advinhá-lo. É apenas o estado de graça de uma pessoa comum que, de súbito, se torna totalmente real, porque é comum e humana e reconhecível.
As descobertas nesse estado são indizíveis e incomunicáveis. É por isso que, em estado de graça, mantenho-me sentada, quieta, silenciosa. É como numa anunciação. Não sendo, porém, precedida pelos anjos que, suponho, antecedem o estado de graça dos santos, é como se o anjo da vida viesse me anunciar o mundo.
Depois, lentamente, se sai. Não como se estivesse estado em transe – não há nenhum transe –, sai-se devagar, com um suspiro de quem teve o mundo como este é. Também já é um suspiro de saudade. Pois tendo experimentado ganhar um corpo e uma alma e a terra, quer-se mais e mais. Inútil querer: só vem quando quer e espontaneamente.
Não sei por quê, mas acho que os animais entram com mais freqüência na graça de existir do que os humanos. Só que eles não sabem, e os humanos percebem. Os humanos têm obstáculos que não dificultam a vida dos animais, como raciocínio, lógica, compreensão. Enquanto que os animais têm a esplendidez daquilo que é direto e se dirige direto.
Deus sabe o que faz: acho que está certo o estado de graça não nos ser dado frequentemente. Se fosse, talvez passássemos definitivamente para o outro lado da vida, que também é real, mas ninguém nos entenderia jamais. Perderíamos a linguagem em comum.
Também é bom que não venha tantas vezes quanto eu queria. Porque eu poderia me habituar à felicidade – esqueci de dizer que em estado de graça se é muito feliz. Habituar-se à felicidade seria um perigo. Ficaríamos mais egoístas, porque as pessoas felizes o são, menos sensíveis à dor humana, não sentiríamos a necessidade de procurar ajudar os que precisam – tudo por termos na graça a compensação e o resumo da vida”.


Estado de Graça - Clarice Lispector